5 de ago. de 2012

BETHANIA (EN)CANTA CHICO

(por Márcia Francisco)

(foto: Márcia Francisco)

“Vou ser artista, minha mãe”
(Dona Canô, lembrando fala de sua filha Bethania, na infância)

Brasileira.
Sexta filha de Seu José e Dona Canô, mãe eterna que por bênção é viva. Dona Canô já contou que no convento, quando Bethânia era criança não cantava no coral, porque todo mundo achava a voz muito forte... É nascida em Santo Amaro da Purificação, cidade que nasceu, na Bahia, de um dos povoados mais antigos do Brasil. É irmã de Caetano Veloso. Caetano Veloso é seu irmão. E ele lhe deu o nome, vindo de uma canção consagrada na voz de Nelson Gonçalves, aquele maravilhoso cantor com voz de:...trovão.
Pretensão pensar em traduzir a grandeza de um ser humano e sua missão apenas própria pela sua biografia. Com Bethânia fica clara esta consciência. Ao vê-la e ouvi-la, se nos aquietarmos é possível estabelecer um contato direto com o significado de um termo que costumo utilizar para designar certas bênçãos com as quais tive a oportunidade de contatar: “através de”. Somos, todos, esse canal. Através de nós se expressa a divindade, a origem, o propósito, como queira denominar. Mas, esta expressão, só se dignifica por ser exata à sua devida grandeza, quando o ser humano se entrega ao exercício desta missão. O termo ‘entrega’, segundo o enorme verbete do Aurélio, entre suas descrições, se relaciona à “confiar”, “dedicar-se, consagrar-se e dar-se”.
“Eu de noite sou seu cavalo (Sem açúcar, Chico Buarque)
Peço licença, pois, à Bethânia, com quem não convivi além palcos o suficiente para retratá-la, para compartilhar minhas impressões, as que se amalgamaram na minha alma, através dos tempos (*divago, pensando, como Nicinha, a irmã que tanto a acompanhou devia conhecer...toda luz.). Aos 11, em minha adolescência, por presente divino e conceito familiar atento, já ouvia Bethânia e cantava, colegas achavam o repertório estranho e pouco contemporâneo às necessidades da pré-adolescência, nos idos dos anos 80. Ouvia, também, toda a efervescência de tendências da década, mas, aqueles LPs de Bethânia (na época sem o h), tocavam noutro lugar em mim. É que a “Abelha Rainha” já estava à décadas cuidando bem da sua colméia.
É que ser filha de Santo Amaro da Purificação, de “nossa querida” Dona Canô, ter fé católica e ser filha de Iansã, não traz missão para quatro paredes. É pauta universal.
Como seria para todos nós, também, se abraçássemos a real condição de estar aqui, com a entrega da lida diária e sua reverência possível. Bethania abraça.
Iansã é a rainha dos raios e dos ventos. Iansã é o vento, a brisa que alivia o calor, mas é também o calor. A senhora dona das ventanias é a guerreira. O elemento é o fogo, é dela o entardecer. Já ouviram Bethânia falar sobre o entardecer? Não falo do poema de Pessoa, consagrado em sua voz. Mas, de um trecho do documentário “Música é perfume”, com o qual Bethânia nos presenteou por ocasião dos seus 60 anos...
Iansã no sincretismo é Santa Bárbara. À ela a oração: “Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura (...)
Desfiando meus rosários de pensamentos soltos para não nos podar em descrições, antologias eternas ou conclusões que limitam as sensações que constroem nosso ser.
Isso tudo para falar de “Bethânia interpreta Chico Buarque”. Um espetáculo ímpar que integra o Circuito Cultural do Banco do Brasil (traz, ainda: Sandy interpreta Michael Jackson e Lulu Santos interpreta Roberto e Erasmo) e viaja em turnê por cinco capitais. Belo Horizonte teve sua prévia em Julho, quando, no dia 29, trouxe Bethania a capital mineira.
A lenda de Yansã, ela, Oyá que dança a dança dos ventos encontra Xangô e dele recebe o poder dos raios e seu coração. Ver e ouvir Bethania cantando Chico é o coração. É puro amor revelado através da música. Duas grandezas, cuja reverência mútua, permite nos palcos e nos discos (como tantas vezes já vimos), a plenitude que a arte pode conter.
Descalça, como sempre atua, fio sagrado que transporta da terra ao céu ‘através de’ si; o ‘Pequeno Príncipe’. Bethania, encantadoramente vestida pelo estilista Ronaldo Fraga, que aliás, também a via, neste dia, de um dos 1700 lugares ocupados no Grande Teatro do Palácio das Artes, traz consigo a divindade. Não sou a primeira a dizer, esta senhora é uma entidade. Técnica exercitada no diário, músicos valiosos e comprometidos com seu ofício. Feito isso, na hora do show tudo isso é sublimado e brota o Ser. A senhora se agiganta, canta, dança, sorri, pronuncia-se, agradece. Ela agradece seu público com reverências, talvez, por experimentar o valor da unidade entre os seres. Ela brinca de cantar, canta sem brincar e nenhum de nós é capaz de afastar olhares dela.
Cantando Chico? A completude. Sem palavras, sinto dizer. Indescritível possibilidade que se confunde ao leve e cuidadoso cenário do espetáculo e sua iluminação exata, torna-se pura luz. Nenhum problema técnico arrancaria daquela senhora e, não arrancou, mais que olhares e palavras de respeito ao público que, em sua maioria jamais teria notado aspectos indesejáveis de som. Porque Bethania é o próprio espetáculo. De Chico, o presente da compreensão do universo do Sagrado Feminino. Mamão com mel. A “Abelha” reina nas interpretações, sem excessos, construindo com justa sutileza o sabor da geléia real que experimentamos.
"(...) apenas seguirei como encantado ao lado teu" (Chico Buarque)
Em um ponto do espetáculo, numa sequência de fôlego sem fim (em que o melhor das canções de Chico se sobrepunham, em interpretações incansáveis e notável escolha, quase sem pausas, encantando a assistência), no desenho de repertório tão bem traçado, conosco Bethania volta o olhar ao cenário que se abre em vídeo em mais recente gravação dela e Chico, lembrando os duetos das temporadas que fizeram juntos, em meados dos anos 70, no Canecão (RJ). Ela se senta, quase se deita, é o encontro e a reverência. Talvez o algo semelhante em referencia, ao que no Candomblé, chama-se “bater cabeça”... Na liberdade e no respeito de homenagear, reverenciar, Bethania nos coloca frente a uma cena de igualdade profunda, entre duas expressões artísticas que se fundem, pelo sacro presente. São duas entidades a serviço da luz. Termina “o ponto”, nós levantamos, público alimentado, fortalecido e grato. Ela volta, canta e canta novamente.
“(...)Ah, eu quero te dizer/ Que o instante de te ver/ Custou tanto penar/ Não vou me arrepender/ Só vim te convencer/ Que eu vim pra não morrer/ De tanto te esperar/; Eu quero te contar/ Das chuvas que apanhei/ Das noites que varei/ No escuro a te buscar/ Eu quero te mostrar/ As marcas que ganhei/ Nas lutas contra o rei/ Nas discussões com Deus/ E agora que cheguei/ Eu quero a recompensa/ Eu quero a prenda imensa/ Dos carinhos teus” (Chico Buarque)
Com sincera devoção à Nossa Senhora e respeito, faço minhas as suas palavras, quando em nossos dois breves encontros, tratamos sobre a bênção: “Nossa Senhora te abençoe”, Bethania! “Nossa Senhora nos abençoe”!

(foto: Márcia Francisco)

P.S..: me permito mais uma partilha. Ao lado destes dois ícones sagrados, há outro que, também, reverencio com muito respeito: Vejo, em Chico Buarque, o maior compositor brasileiro. Hoje, um mestre de sensibilidade próxima é definido por mim como o maior compositor brasileiro da atualidade, com semelhanças a Chico pela profundidade das letras e compreensão tão precisa da alma feminina, mas, cuja personalidade própria se revela facilmente no simples exame de sua obra. Estou falando de Vander Lee. Numa dessas “deusidências” da vida, pude presenciar nos bastidores o encontro de Bethania e Vander Lee, após o show do dia 29 de julho, no Palácio das Artes. Bethania que já gravou Vander Lee o recebeu calorosamente, em recíproca emocionante. Compartilho aqui, o vídeo amador que fiz, de um trecho deste encontro, quando Bethania canta “Estrela”, de Vander Lee, em recepção de delicadeza ímpar e cuja celebração genuinamente traduz um encontro verdadeiro. Nesta noite, mais um. Com gratidão e licença:

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